agostinhos

tenho uma conversa cínica com o meu sogro acerca do D. Sebastião, digo-lhe que há uma teoria de que apareceu preso em Veneza por pressão castelhana, logo após se acercar à cidade vindo de alguma cruzada intercalar, cheio de marcas de cimitarras, identificado através de sinais no corpo por alguma embaixada portuguesa ao local e libertado, e preso novamente em Itália nas nocturnas pesadíssimas de Florença, com absinto nas veias e duas senhoras não identificadas mais um moço de estábulo da Villa Capra que viajava consigo, absortos nos prazeres da sua androginia. digo-lhe que foi depois novamente reconhecido pelos duques de Medina Sidónia, recebeu Breves Pontifícios de 3 papas consecutivos mas que mesmo assim mercenários castelhanos o teriam conseguido agrilhoar à revelia da lei e assassinar, tendo sido descoberto séculos mais tarde um túmulo perfeitamente identificado no Convento dos Agostinhos de Limoges. Foi um esforço grande lembrar-me de todos os nomes, de todas as curvas históricas que localizavam a acção, dos títulos documentais, Breve Pontifício é um paquiderme de uma designação para introduzir numa conversa regada a vinho verde, Breves Pontifícios, com a língua a sibilar no céu da boca em demasia, com amigos diria "o papel", mas não com o meu sogro, esse Mattoso da raia minhota, expondo infantilmente o pretensiosismo da minha argumentação. que figura idiota.

a Clara tira-me o copo e vai bebendo pequenos goles de periquito, o Menanços solta-a, solta-lhe a roupa ligeiramente e as palavras porcas, até na presença do pai. a mãe da Clara ri-se muito das palavras porcas da Clara. o Menanços solta-a também a ela, goza comigo como se fosse minha própria mulher. fico desconfortavelmente excitado com a excitação que a mãe da Clara emprega nos diálogos comigo, ainda mais quando bebe uns copos e se alia à filha na galhofa alcoólica.

o meu sogro já não me serve vinho. também não faço cerimónia, tiro a garrafa da frente do seu prato, sirvo-me e não sirvo mais ninguém, tranquilo, sem pudor. as refeições acabam, ficamos todos à conversa, sigo-lhe o olhar de cada vez que volto a servir-me de vinho. nesta altura pergunto-lhe se é servido, diz-me sempre que não, assegurando-me que o seu olhar é apenas de desprezo pela quantidade de vinho que bebo. as sobremesas no norte são com vinho verde, a minha boca aqui é cosmopolita, nela cruzam-se os sabores mais inconjecturáveis, escabeche de jaquinzinhos, chouriças de arroz e sangue, pudim de coco, broa de Avintes, partes íntimas da Clara, solha, verde tinto, telhas de amêndoa.

bullshit, responde-me ele calmamente, apareceram 5 pretendentes ao trono, 5 ou 6 impostores que juravam ser o D. Sebastião, todos eles foram mortos pelo sacrilégio e esse foi morto pelas mesmas razões, porque não passava de mais uma farsa. nunca ouviu falar nele, mas não tem dúvidas. respondo-lhe que não sei, não vivi nesses séculos, mas que é apenas uma teoria. teorias da treta, responde-me. calo-me remetido à minha irritação cutânea. volto à carga concluindo que também gostava de ter a sua idade e ter vivido acontecimentos destes para saber do que falo, que muito aprendo com ele. sorri enervadamente e volta a servir-me da garrafa que viu acabar há minutos no meu copo, espreme a garrafa de vidro, cai uma última gota para o meu copo, pousa a garrafa e olha para mim com um sorriso vitorioso de ancião sarcástico. a gota no fundo do meu copo vazio. abro outra José?

as mulheres riem, da conversa secreta que tinham ainda há segundos e da qual me chegavam sussuros sórdidos. a Clara ri-se como quando fala da minha intimidade, riem cada vez mais, pergunto-lhes o que se passa, já não se controlam, segredos de mãe e filha, acerca dos pais e dos filhos. os nossos filhos e netos estão a ver merda na televisão em silêncio na sala, talvez notícias de um massacre na Nigéria. os mosquitos do rio entram quando o pai da Clara abre a porta da cozinha a 480 graus para ir ver se chove a meio de Agosto, sabendo perfeitamente dos hematomas com que eu fico quando sou picado por aqueles pterodáctilos de Caminha, baterias de insectos acotovelam-se para entrar dentro de casa, picando-me apenas a mim e ao meu filho mais velho. Está-se cagando, o meu sogro, diz que também era picado na década de 20 sei lá de que século e hoje em dia não lhe fazem mal, que é bom que o miúdo seja picado agora para ficar vacinado, como as boas gentes do Minho. sou frequentemente colocado fora da linhagem desta família com comentários ácidos deste calibre.

o verão está no pico aqui em cima, o calor e a chuva fazem-nos alternar entre a praia de rio e os jogos de Risco com os namorados das primas universitárias. são gente descomplexada, não entendem muito de estratégia militar nem cognitiva, pelo que mesmo querendo sair do jogo para ir ler o "Heróis em Pantufas" não consigo perder, nem mesmo imitando-lhes a táctica de colocar a carne toda no assador e desafiar a lógica dos jogos de azar e a própria física atirando os dados até perder a dignidade, ganham-me num jogo de perder, não consigo sair da mesa e deixá-los a falar dos seus carros.

D. Sebastião, há estudos e autores que... depois da aliança com o sultão pretendente ao trono Saadita e alguns mercenários cruzados mais interessados em indulgências papais e violações em massa de sultanas do que em Cristo, investiu tudo contra aquilo que na prática era o império Otomano, como faca quente em betão curado. correu mal, como até ele previa. as tropas estavam cansadas da viagem e foi-lhes concedida na noite anterior à batalha uma prova de vinhos à moda quinhentista, estavam na sua maioria de ressaca de vinho mau no sol do deserto, perante um exército 5 vezes superior, que defendia a sua terra. retirou-se da batalha olhando-a antes de cruzar o Atlas, com graciosidade de um Durão Barroso, e contava voltar caramelizado a tempo do V Império cujo mito acabou apenas por adensar.

retirou-se logo no início com um conjunto de jesuítas pertencentes ao terço central da estrutura hipodâmica em que se dividia o exército português, o terço dos que não estavam ali a fazer nada de tacticamente relevante, além de clérigos havia mulheres de conforto em número maior que os próprios militares, estas mulheres, na maioria portuguesas das terras acima de Santarém, ficaram por aquelas bandas no fim da batalha, sobretudo por falta de boleia para cima, com pouquíssimas baixas, e contribuíram para a miscigenação dos países do norte de África, que ainda hoje são depreciativamente chamados de Galegos pelos povos da África subsariana. já os religiosos eram enviados pelo Cardeal D. Henrique e estavam a par da fraqueza do Rei adolescente pela luxúria e a glória fácil, estavam ali para ajudá-lo a ele e não a humanidade, enquanto isso lhes permitisse trocá-lo no trono pel'O Casto, mas por evidências da designação, este não deixou descendência e os reis espanhóis trouxeram o seu próprio tribunal do santo ofício. enterrou-se em Alcazar um corpo, sim, mas foi o de um turista inglês algo fútil que comandava um pelotão de italianos recrutados originalmente para atacar a Irlanda, curiosamente também era hermafrodita, o que confundiu a identificação e facilitou o embuste da morte do Rei. demasiado patético para sobreviver, Stukley foi morto por uma bala de canhão nas pernas quando tentava ainda hastear uma bandeira arco-íris ad-hoc que lhe fora descrita por um camponês alemão nas suas itinerâncias continentais. D. Sebastião tentou perder num jogo de ganhar, e perdeu-o, mas acabou em Itália na intermitência entre a prisão e a boémia de sarjeta, a tentar que acreditassem que era rei, bêbado decerto, enquanto o seu corpo jazia em Marrocos em duas valas distintas separadas de 25 metros.

por vezes no cimo do baluarte da Restauração num fim de dia dourado com a Clara e os miúdos, olho na direcção da foz, do Camarido, e do amanhã, e digo-lhes, é dali que ele virá, o nevoeiro, para foder-nos mais um dia de praia.

6 comentários:

Anónimo disse...

Olha,acabo de simpatizar com o teu sogro.Podes apresentar-mo?

disse...

também me desprezas?

Cláudio disse...

Vale sempre a pena a espera, grande Zé Bukowski!

disse...

obrigado Cláudio. agradeço a referência, mas vai fazer-me fugir de alguma coisa que possa soar ao homem no próximo texto. acho que o melhor é deixar passar mais uns meses.

tata disse...

Nunca desiludes.

O Grunho disse...

Cá no bairro há um velho que tá sempre a falar nessa merda, que D. Sebastião foi com os três para Africa e ainda por cima fodeu a espada do D. Afonso Henriques e que era roto e tudo. Pá não queremos mais ladrões e panascas que já chegou o Portas.